quinta-feira, 6 de novembro de 2008

1.

Este segundo é toda minha vida. Minha voz não pode ser senão impessoal. Me falta um módulo, a descoberta, a maneira, ainda que rouca. Estou agachado sobre meu corpo. São sete horas e trinta e cinco minutos. É mentira, mas acredito que é esta a hora exata. Os jornais se aproximarão do caso, recortando-o, com esta hora aproximada e afiada. Estou de olhos fechados e no entanto posso ver tudo. A minha volta está repleta de pessoas que se debruçam, passantes que se estagnam, trânsitos que rugem, faróis que pulsam. Antes que se forme um círculo ao meu redor, vejo um rato sair de um bueiro. O bueiro, o rato seriam metáforas ótimas, melhores que as pessoas, para qualquer coisa. As pessoas me atropelaram. Eu fechei meus olhos como num daqueles filmes. Não desejaria promessas à beira de meu cadáver, beijo, ultimato, pressa. Nada disso. Isso não vi. Cerrei-me antes que mais imagens afoitas se alojassem em minhas retinas. Vejo tudo, mas com um balaço de impressão ao centro. Acalmo-me. Na verdade não morri, e logo em seguida rio de minha ingenuidade. Nesta hora nada seria possível senão morrer. Ajeito o paletó, os botões. O linho é cinza e poderia oportunamente o ser, mas não é possível chegar aonde quero. A morte não é apagada, não é nebulosa. A morte se inscreve. (Conto-lhe.) Há agora e para sempre um sol estático sobre minha cabeça. Consigo pensar, veja. Esta metáfora que me atinge será somente verdade. A morte é fétida. Mas este segundo não se exala. Ele se contém e arde. Estapeio-me a cara. Ande! Mas como você está pálido! Por um momento que não é outro penso em me levantar e continuar a vida, abrir uma porta, dobrar uma esquina. Tento. Meus joelhos então parecem se arraigar ao asfalto, mas eu não seria uma flor. Não consigo saber da poesia nesta hora que não goteja e é orvalho latente. Esta é também pedra que não verte leite, trauma que não se chora, qualquer coisa. Esta hora é o substantivo concreto puro. Qualquer abstração para a qual apelasse, soluçante, seria outro nome para a mesma coisa. Dou-me as mãos. Não as cruzo ao peito. Estou novamente de cócoras sobre mim, alinhado a meu umbigo, e tento erguer-me. Inútil. Meu corpo se desmaia sem se mover um milímetro, assim como minha alma. Minha alma, penso, não se moveu. Não se escoou para nenhum bueiro, não se molestou com o sol, não se matou. Porém parece se limitar ao que vejo neste ponto e nos segmentos que o atravessam. É tudo muito estranho, admito. Admito o quê? A morte? Seria a morte o limite, a intersecção, o corte. Onde não é mais possível ultrapassar com o sonho dos românticos, a gana dos condenados, a ambição dos porcos encoleirados com pérolas. Qualquer coisa. Sinto que repito tudo servir. Que enfileiro as palavras últimas que me restam. Dou um giro espalmando o chão quente. A cada grau as pessoas comentam, registram, anunciam. Sabem que não morri. Que na verdade sou memória eterna, resquício de afeto, ódio ululante. Todos que conheço me chorarão. Seus choros podem ser também qualquer coisa. São olhar horizontal que procura, desatento, e despenca em minha inexistência. Ouço uma sirene. O exercício de ouvir afaga minha voz. Paro para escutar a música que me cerca. Há senhoras que rezam, há um motorista que pragueja, há um paramédico que massageia meu coração. Há uma vida que se desculpa. Só haveria um segundo, que me prende. Antes de seguir em paz terei de enfrentá-lo. Terei de matar cada informação que ele compreende. É também o tempo sábio. Tudo cura, tudo provém. Aproxime-me, deite-se a meu lado. Sem sorrir, por favor, não é hora. A hora é. Encoste seu ouvido no meu, depois em meu peito, nas costelas, em todo meu corpo que ressoa. O som é perito. Mas é profundo e guarda todas as histórias em silêncio, não incrimina. Por isso não tema. Este segundo é toda minha vida. Ouça.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Das muitas cartas

Nestes dias me surpreendo cabisbaixo e as pessoas me perguntam por que estou triste. Não encontro resposta e algo me percorre soprando que não é tristeza, que não haveria motivos para. Há uma ausência morando em mim. Uma ausência que com o tempo vai desarrumando a casa ou que vai tornando inválida a antiga ordem. Queria tanto que em meus dias houvesse ao menos um instante que por ser só nosso faria valer todas as más horas (que, sabes, temos de atravessar) e também tornaria melhores as horas boas. Queria tanto ligar contigo fins e começos, noites e manhãs e, assim, acalmar esta morte consecutiva. Hoje, por exemplo, ao ir beber água durante o teatro, vi tua carteira em tua classe, e isto nada tem de literária ou de qualquer outra intenção. Era tua exata carteira, tua carteira de canhoto, onde te sentas todos os dias com o amor canhestro que há em ti e que nos desvia. Fiquei imaginando que poderia me aproximar sorrateiro ou qualquer coisa assim e te enlaçar e te beijar e. Ontem, em todos os momentos em que o sono me venceu (minutos de uma aula, cenas de um filme), sonhei, o que é incomum quando durmo, e lá estavas, a mão estendida. Nestes dias tenho lido, lido, lido, para diante da Beleza poder chorar e não pensar que meu choro é em vão. E logo eu, que tento me mostrar tão forte quando nossos olhares, por encanto, se cruzam nos intervalos e nos descruzamos com uma espécie de afoiteza. Logo eu, que silencio.

Meu silêncio é uma mentira.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

A hora irrepensável

As coisas estão de prova. Os objetos não me deixam mentir. As peças de xadrez me olham de sua desordem. Não sei qual time ganha. O quarto está uma zona. Há livros e roupas esquecidos em lugares, agora assimilo, estratégicos. De lá me vigiam. Não me deixam fugir de meu estado caótico para idílios etéreos. O teto em branco. A luz. Feito chama que se alastra pelo papel. Desapropriando as moradas originais das palavras. Pairam feito gritos, estas. Invoquei-as, na esperança de encontrar sentido ou mesmo entender o que virá depois. Gritei, mas não havia voz. Meu desespero falha. Não consigo sequer dormir. Os gritos me ficam a correr no sangue. Quedas. Sete. (Que bonita a simbologia das coisas!) Querem sair, já birrentos, para um rio maior que se chama Tempo. Onde as coisas todas, os objetos, os gritos, as palavras — toda a verdade que havia em mim — não passa de limbo.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Sonata para acordar

Eu escreveria isto ontem se não tivesse sido escurecido novamente pela espécie de sono que me acompanha há algum tempo. É um sono sem lei mas também sem dor, sem cansaço mas também sem repouso. É um ciclo, acho, adivinho. Começa pela manhã, quando acordo invariavelmente com os maxilares retesados, a testa densa e braço ou perna dormente. É como se a manhã me soterrasse. Sem explosões, tremores, estrondos, deslizamentos, sem falta de ar, sem morte aparente. Estou lá, apenas, sob um véu misto de mar e céu, sol e nada. Então me levanto, meus músculos de fastio e tétano se habituam aos movimentos simples que descrevo pela casa. Ando triste. Ando pela casa. Chafurdado num chão mas quase desencarnado. Nefelibata não é a palavra. Não me ligo a crenças, símbolos, rituais, datas, sortilégios, cartas, intuições, aniversários, sinais, astros, cores, nomes. Pelo menos, quanto à metade deles, não com a intensidade necessária. Quer dizer, é aconchegante pensar: "Hoje é meu aniversário, vai ser um dia especial!", ou "Olha, meu nome significa isso e tal...". Mas faz quase um ano que foi fevereiro, que foi carnaval, e faz muito tempo que me chamo pelo meu nome. Melancolia também não é a palavra. Os melancólicos têm uma certa "volúpia de aborrecimento", e não o digo simplesmente porque sempre convém citar Machado, mas sim porque conheço casos, gentes, olhos que me confessaram como é estar assim. E a confissão é o dom de desaguar um pouco no outro. Mesmo contra a vontade, de uma ou de ambas as partes. Assim, passo as horas como se tivesse sido regado em meu silêncio. Confesso-me aos poucos a essa má companhia que sou quando sozinho. Não por falta de opção, mas na tentativa (adjetivável) de ir me convencendo novamente a mim. De que sou inocente. Ah. Adjetivos: imodesta, estranha, chata, louca. Qualquer destes se adequaria à minha tentativa. A minha tentativa que tem me acompanhado há algum tempo, e da qual começo a me tornar conteúdo. Começo a soar justamente a: uma tentiva. Algo que dará certo, em que todos acreditam, mas que, caso contrário, é facilmente substituído. Por uma tentativa que chegue aonde todos querem chegar. Aonde?

Aonde eu me quero chegar?

Enquanto não me chego, não me basto, eu espero - com a paciência dos novos amigos e dos velhos inimigos - que a noite chegue, e com ela o sono que ainda não desvendo. Porque talvez eu já tenha me desvendado e não saiba para onde olhar. Que luzes seguir.